A neurocientista cognitiva americana Maryanne Wolf costuma
ser abordada, em suas palestras e aulas, por pessoas que se queixam de não
conseguir mais se concentrar em textos longos ou "mergulhar" na
leitura tão profundamente quanto conseguiam antes.
"As pessoas estão percebendo que algo está mudando em
si mesmas, que é seu poder de leitura. E há um motivo para isso", diz
Wolf.
A razão, segundo a pesquisadora da Universidade da
Califórnia em Los Angeles (UCLA), é que o excesso de tempo em telas - celulares
e tablets, desde a infância até a vida adulta - e os hábitos digitais
associados a isso estão mudando radicalmente a forma como muitos de nós
processamos a informação que lemos.
Segundo um livro de Wolf prestes a ser lançado no Brasil (O
Cérebro no Mundo Digital - Os desafios da leitura na nossa era; ed. Contexto) e
algumas pesquisas sobre o tema, o fato de lermos cada vez mais em telas, em vez
de papel, e a prática cada vez mais comum de apenas "passar os olhos"
superficialmente em múltiplos textos e postagens online podem estar dilapidando
nossa capacidade de entender argumentos complexos, de fazer uma análise crítica
do que lemos e até mesmo de criar empatia por pontos de vista diferentes do
nosso.
Tudo isso tem o poder de impactar desde a nossa performance
individual no mercado de trabalho até nossa tomada de decisões políticas e a
vida em sociedade. Null Talvez também te interesse
null. Mas o que acontece com a leitura no nosso cérebro, e o que
podemos fazer a respeito?
O circuito da leitura
Wolf, que é diretora do Centro de Dislexia, Aprendizagem
Diversa e Justiça Social da UCLA, explica à BBC News Brasil que, ao contrário
da visão e da linguagem oral, a habilidade de ler e interpretar letras e
números não é algo com que nascemos: a leitura é resultado de um circuito que
os seres humanos começaram a criar no cérebro cerca de 6 mil anos atrás.
Esse circuito cerebral começou a se desenvolver quando
nossos antepassados passaram a contar cabeças de gado e a criar símbolos para
fazer seus primeiros registros escritos. E evoluiu, em (relativamente) pouco
tempo, até a elaborada capacidade que temos hoje, de processar argumentos,
sutilezas e emoções impressos nas páginas de livros e jornais.
"Não existe, portanto, um circuito genético para ler,
que se desenvolva logo que uma criança nasce", explica Wolf à BBC News
Brasil.
"(A habilidade de) ler é algo que precisa ser criada no
cérebro, e o circuito vai refletir a linguagem que a pessoa usa, seu sistema de
escrita, e o meio pelo qual lê."
Ou seja, esse circuito é moldado pela forma como lemos e
pelo tempo que gastamos na leitura. Como os hábitos digitais atualmente
favorecem uma leitura pouco aprofundada, em que apenas passamos os olhos por
textos diversos, o perigo, diz Wolf, é que a habilidade de entender argumentos
complexos - sejam eles presentes em um contrato legal, em um livro, em uma
reportagem mais longa - pode ser "atrofiada" caso não seja
exercitada.
Em um cenário de leitura apenas superficial, "o
circuito da leitura no cérebro não vai alocar tempo suficiente para um processamento
cognitivo" necessário para um processamento crítico, diz a acadêmica.
"Ao apenas 'passar os olhos' em um texto, a pessoa
passa por cima da argumentação, dos pontos mais sofisticados do texto, e
receberá menos da substância de pensamento que é importante para a análise
crítica."
Tempo de tela
A preocupação principal de Wolf e de acadêmicos como ela é o
que acontecerá com as gerações mais jovens, habituadas desde os primeiros anos
de vida a passar horas nos celulares e tablets e a consumir ali toda a sua
informação, com rapidez e diversas distrações.
Embora muito se fale dos riscos que o excesso de tempo
passivo diante de telas pode causar para a saúde infantil - dos problemas de
visão à obesidade -, só agora a ciência começa a explorar o potencial impacto
dos hábitos digitais sobre o poder de leitura e a concentração dessas crianças
no futuro.
Uma meta-análise feita por estudiosos da Espanha e de Israel
analisou dados de 171 mil pessoas na Europa, coletados entre 2000 e 2017, para
comparar a compreensão de leitura dos participantes nos meios digital e papel.
O estudo diz que
ainda é difícil chegar a conclusões absolutas, porque o desempenho das pessoas
é "inconsistente", mas identificou o que chama de "inferioridade
da tela": a leitura digital parece não favorecer as habilidades de
compreensão dos leitores, e o processamento das informações é mais
"raso" nesses meios online.
O que acontecerá no futuro ainda é difícil prever. O estudo
levanta a possibilidade de as vantagens da leitura no meio impresso se perderem
ao longo do tempo.
Já Maryanne Wolf teme que, em vez disso, as pessoas percam
aos poucos as capacidades de leitura que levamos milênios para desenvolver no
nível atual.
"É isso o que me preocupa nos mais jovens: eles estão
desenvolvendo uma impaciência cognitiva que não favorece (a leitura
crítica)", diz a acadêmica. "Deixamos de estar profundamente
engajados no que estamos lendo, o que torna mais improvável que sejamos
transportados para um entendimento real dos sentimentos e pensamentos de outra
pessoa."
É nesse aspecto que Wolf acredita que a "leitura
rápida" pode reduzir a nossa capacidade de sentir empatia pelos demais ou
de superar mais limites de conhecimento. E também dificultar o nosso
entendimento sobre o que está acontecendo na política, na economia ou em
qualquer outro fenômeno social complexo, que exija uma leitura cuidadosa e que
tenha causas - e soluções - não simplistas.
"As pessoas ficam muito mais suscetíveis a fake
news e demagogos que criam falsas expectativas", opina ela.
Outra possível consequência é que diminua nossa capacidade
de pensar mais criticamente e de levar em conta diferentes pontos de vista,
habilidades consideradas cada vez mais importantes no mercado de trabalho à
medida que empregos que exigem menos capacitação vão sendo automatizados.
O psicólogo Daniel Goleman, que também estuda esse assunto,
alerta para o que chama de "atenção parcialmente contínua" - citando,
por exemplo, participantes de seminários que, de olho em seus celulares e
notebooks, não conseguem prestar atenção plena ao que diziam os palestrantes do
evento.
O perigo, diz ele, é que percamos parte da nossa habilidade
de chegar ao fim de leituras e de tarefas offline.
É preciso ser realista
No entanto, os pesquisadores concordam que não adianta
querer evitar o inevitável: as pessoas leem cada vez mais online e de modo
rápido, e isso certamente não mudará em um futuro próximo.
"Está claro que a leitura em meios digitais é uma parte
inevitável das nossas vidas e uma parte integral do campo da educação",
diz a meta-análise europeia.
"Ainda que os resultados atuais indiquem que a leitura
em papel deva ser preferida à leitura online, não é realista recomendar que se
evitem os dispositivos digitais. No entanto, ignorar os resultados de um
robusto efeito de inferioridade da tela pode (...) impedir que leitores se
beneficiem plenamente de suas capacidades de leitura e que crianças desenvolvam
essas habilidades."
Wolf lembra, ao mesmo tempo, que são inegáveis os benefícios
da internet e da leitura online para democratizar e agilizar a transmissão de
informação. Para ela, o primeiro passo é termos consciência do que está
acontecendo com nossa capacidade de leitura.
"Quero reforçar que não vejo isso como uma questão
binária, como uma oposição (entre telas e material impresso). Temos apenas de
saber qual o propósito do que estamos lendo e qual é a melhor forma de fazê-lo.
Não se trata de escolher um meio em detrimento do outro, mas sim entender o que
está acontecendo com nosso cérebro e entender o propósito do que se está
lendo", diz a pesquisadora.
"Se eu precisar ler algo simples e superficial, a tela
é ótima. Mas se for algo complexo, que necessite de um olhar sob diferentes
perspectivas, em que precise discernir o verdadeiro valor da informação, então
tenho de pensar se o meio vai promover o processamento mais lento e profundo de
uma análise crítica."
Como incentivar a leitura crítica
Não há, diz ela, uma receita universal para preservar nossa
habilidade de leitura crítica, mas sim a necessidade de prestar atenção a
nossos próprios hábitos e aos das crianças.
Para algumas pessoas, bastará concentrar-se em uma leitura
sem distrações - mesmo que seja online - e manter o olhar atento para múltiplas
perspectivas e pontos de vista. Outros talvez precisem ter a autodisciplina de
limitar seu tempo diário diante das telas, para ter o que ela chama de
"vida digital mais saudável", além de retomar o hábito de ler livros
impressos.
E, para crianças e adolescentes, eis algumas recomendações
do livro de Wolf:
- Ensinar a evitar o "multitasking". A realização
de múltiplas tarefas simultaneamente online dá aos jovens a capacidade de lidar
com múltiplos fluxos de atenção, mas cria dependência de dopamina (que
recompensa o cérebro por buscar constantes estímulos) e desestimula a memória;
- Proteger o tempo ocioso das crianças, ou seja, não deixar
que todo momento de ócio vire desculpa para usar telas. É no ócio que nasce a
criatividade;
- Ler livros para as crianças, antes mesmo de elas começarem
a falar. Isso estimula conexões neurais, a atenção recíproca entre pais e
filhos, a experiência tátil dos livros e é, diz ela, o "começo ideal para
uma vida de leitor". Wolf faz coro com especialistas que sugerem que
crianças com menos de 2 anos não devem ser expostas a telas;
- Entre dois e três anos, limitar a no máximo meia hora o
tempo diário de tela. Para os maiores, limitar a duas horas diárias. Wolf acha
que não adianta proibir totalmente as telas, porque isso só causará mais
obsessão por elas. O jeito é buscar equilíbrio;
- Sobretudo entre 2 e 5 anos de idade, cercar as crianças de
lápis coloridos, livros, números e música, que estimulem a criatividade e a
exploração física do meio. O aprendizado de música e de esportes também ajuda a
ensinar disciplina e recompensas de longo prazo;
Por fim, ela lembra que muitas crianças conseguem manter a
conexão com os livros mesmo acessando tablets e celulares com moderação.
"O importante é estimular a formação de uma mente curiosa", escreve
ela. "A formação cuidadosa do raciocínio crítico é a melhor maneira de
vacinar a próxima geração contra a informação manipuladora e superficial, seja
em texto (de papel) ou em telas." Fonte: www.bbc.com
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